A intempérie que se fez no país na semana do evento não foi suficiente para ‘travar’ o entusiasmo dos participantes na edição 2023 do Portugal de Lés-a-Lés, a mais importante iniciativa de motorurismo existente em terras lusas, A chuva da véspera, durante o Passeio de Abertura, e as ameaçadoras previsões de inclemência meteorológica tiveram o condão de alertar os 2250 participantes no 25.º Portugal de Lés-a-Lés para uma etapa que poderia ter dose extra de aventura. De Bragança a Viseu, foram 304 quilómetros de estradas panorâmicas, muitas delas inéditas nos mapas da maratona mototurística organizada pela Federação de Motociclismo de Portugal.
Em dia de trautear a canção tradicional portuguesa, associada a uma dança de roda, ‘Indo eu, indo eu, a caminho de Viseu’, a partida foi madrugadora, com os primeiros a lançarem-se à estrada, noite cerrada, ainda batiam as 6 horas no relógio da Catedral de Bragança, a primeira a ser inaugurada em Portugal no século XXI. As serpenteantes estradas da serra de Nogueira, completamente desertas numa manhã de feriado, acordaram com a passagem de mais de 2000 motos. A chuva caída durante a noite levou muita terra e detritos para a estrada, exigindo cautelas redobradas, mas sem roubar a oportunidade para apreciar os densos bosques de carvalho-negral (Quercus pyrenaica) naquela que é maior mancha europeia de uma espécie bem-adaptada à altitude.
Soutos de monumentais castanheiros ajudavam a tranquilidade que estava prestes a ser ‘perturbada’ em Celas, onde os Conquistadores de Guimarães protagonizavam a primeira traquinice do dia, oferecida juntamente com um café bem quente. Foi o ‘clero’ em peso até à estrada, com direito a bênção do bispo com água mundana como a chuva que caía, e aos furos na tarjeta que atesta o bom cumprimento do percurso, a cargo das freiras. Incluindo uma irmã prestes a ter ‘uma boa horinha’… Ainda mais animada seguiu a caravana, sempre com sorrisos que nem a chuva conseguia afogar, continuando a desfrutar paisagens soberbas num dia que foi de ‘verdadeiro Lés-a-Lés’. Podence, terra de caretos, ficava no caminho e houve quem não desperdiçasse oportunidade de tirar uma ‘selfie’ com o presidente Marcelo ou com o craque Ronaldo. Paisagens que eram verdadeiro conforto para a alma, mas que pediam algo mais para o estômago.
Morais, aldeia do concelho mogadourense, revela de forma única a dinâmica geológica dos continentes, sendo o local exato onde, há mais de 400 milhões de anos, muito antes de surgirem os dinossauros, se deu a colisão de massas que originou uma cadeia de montanhas, designada pelos cientistas por sutura do Orógeno Varisco. Morais oferece, pois, uma viagem aos primórdios da Terra enquanto planeta, concentrando em poucos quilómetros aquilo que, normalmente, só se vê em milhares de quilómetros de extensão. Com o tempo a variar entre algumas abertas e monumentais cargas d’água, tempo para alguns contratempos, como os travões de tambor de algumas cinquentinhas que iam perdendo eficácia. Ou a vela de ignição isolada na Jawa 250 de Hélder Alves, obrigando “a uma mecânica básica, para, em menos de cinco minutos, voltar à estrada. Afinal, trata-se de uma máquina de 1952, que cumpre o Lés-a-Lés pela 9.ª vez e que nunca deixou ficar mal o proprietário”. Incluindo as viagens entre Santa Maria da Feira e os locais de partida e chegada.
Mas a chuva, com presença forte a espaços, como que a brincar com os participantes, não roubou espetacularidade à passagem pelo vale do Sabor e do seu afluente, o Azibo, cuja albufeira reforça os argumentos desta região enquanto excelente destino turístico. Incluindo o belíssimo parque de merendas de Vale da Porca, onde os mais corajosos, lançaram-se na travessia a vau do ainda pequeno caudal do Azibo. E seria também o local da primeira passagem pela terra, 600 curtos metros que revelam a essência da maior maratona mototurística da Europa, não fosse a chuva ter desaconselhado este desvio, mantendo a caravana em estrada firme. Estradinhas de deliciosas curvinhas, com passagem por Chacim e pelo Real Filatório (fábrica do fio de seda mandada erigir pela Rainha D. Maria, em 1788, com amoreiras para alimentar os bichos-da-seda), até Alfandega da Fé. Onde foi possível provar as cerejas cultivadas nas faldas da serra de Bornes. Fruto a que se juntariam as famosas amêndoas de Torre de Moncorvo, não sem que antes passasse o pelotão em Eucísia. Uma pequena aldeia que encerra uma lenda curiosa sobre um sacerdote do arcebispado de Braga que, incumbido de verificar se tudo corria bem na paróquia, ali jantou e dormiu. Como era pouco resistente aos pecados mundanos da comida e da bebida, terá abusado da boa pinga e, a meio da noite, para satisfazer as necessidades fisiológicas, dirigiu-se às cavalariças onde, embalado pelo sono ou pela bebida, deixou-se adormecer. Manhã bem cedo, quando a população o viu em tais preparos, justificou-se que havia ali sido colocado pelas bruxas. E, assim, Eucísia ficou conhecida como a terra das feiticeiras…
Bem mais reais são as alterações ao rio Sabor entre Alfândega da Fé e Moncorvo, causadas pela construção da barragem que todos puderam apreciar antes de provar deliciosas amêndoas caramelizadas. Pitéu oferecido por ‘nobres’ do Moto Clube do Porto trajados a rigor, muito perto da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção, que é, desde janeiro do ano passado, por decreto assinado pelo Papa Francisco, Basílica Menor de Torre de Moncorvo. Começou a ser construída no século XVI, no tempo do Infante de Sagres, e ergue-se no local onde existiu um templo paroquial primitivo da Idade Média. Deixando a História e voltando à estrada, degustando as amêndoas na descida até ao Pocinho, tempo para desfrutar da estrada nacional 220 e atravessar o Douro na barragem inaugurada em 1982. No fim da qual estavam os minhotos do Moto Clube de Prado, com deliciosas bifanas para aquecer os estômagos mais protestantes, enquanto se apreciavam as quintas da D. Antónia, onde é produzido o Barca Velha.
Entrando no distrito da Guarda por Vila Nova de Foz Côa, foi a caravana apreciando a mudança de paisagem onde, apesar da chuva, se vê que é notoriamente mais seca! Mas há sempre belezas para apreciar na grande aventura mototurística, como foi o caso Freixo de Numão, antiga sede de concelho, ou a muito panorâmica estrada até Mêda, em região onde abundam fortificações então mais importantes que a agora sede de concelho. Era o caso de Longroiva, Ranhados ou Casteição, bem como da pequena, mas muito interessante, Marialva, com castelo e pelourinho, cruzeiro, igrejas e capelas, solares, cisternas e postigos. Claro que não podíamos esquecer a importância arqueológica em Moreira de Rei, aldeia onde, em 2018, foi descoberta a maior necrópole de sepulturas antropomórficas da Europa, com 600 sepulturas de adultos e crianças em redor da igreja de Santa Marinha (Séc. XII). As obras desaconselharam a visita, mas houve curiosos que não resistiram, como também quiseram sentir o ambiente do palco da Batalha de Trancoso que, a 29 de maio de 1385, marcou a reviravolta na luta contra o invasor castelhano.
Na monumental vila de Trancoso, palco para a aparição da corte dos Moto Galos de Barcelos, que não quiseram perder oportunidade de ‘armar cavaleiros’ enquanto picavam as tarjetas, enquanto logo a seguir foi tempo de parar em Celorico da Beira.
Na terra que viu nascer Sacadura Cabral, que em fez a primeira travessia do Atlântico Sul com Gago Coutinho, uma surpresa de boa disposição e petiscos, com o queijo da serra de que esta vila se intitula ‘capital’ juntamente com doces e tostas com azeite e boa companhia musical. No local onde, há 25 anos, o MC Porto passou o testemunho ao MC Estarreja e Mototurismo do Centro, que haveriam de guiar a caravana no 2.º setor, até ao pico da Melriça, tempo para um inesperado encontro. Afinal, entre os milhares de anónimos do pelotão, surgiu um campeão nacional de todo-o-terreno. Que, por sinal, faz a sua estreia no Lés-a-Lés e logo da forma mais ousada.
Seguindo a N16, com a companhia do rio Mondego, atravessado para entrar no distrito de Viseu, momento importante na história da indústria automóvel em Portugal, com a passagem por Mangualde. Sede do primeiro centro de produção automóvel no nosso País, inaugurado em 1962, e lembrada por um Citroën DS colocado numa rotunda. Bem diferentes as joias e as histórias encontradas após cruzar o rio Dão, rumo ao centro da cidade de Viseu para descobrir o centro histórico, a Sé Catedral (Séc. XII), começada a erigir no reinado de D. Afonso Henriques, e o Museu Grão Vasco. Isto mesmo antes da subida ao palanque, à porta dos Paços do Concelho, na melhor sala de visitas viseense, após nove horas e meia de condução. E antes de um dia que levará a caravana até Ourém, após 240 km muito exigentes em termos de condução.
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